sexta-feira, 27 de março de 2009


Silêncios

Silêncio… Penso que ninguém vai entender... ou, se entender, não vai concordar.

Existe um paradigma que diz: enquanto me deres carinho e tratares de mim, eu vou-te amar. Então, troca-mos o nosso amor por um punhado de carinhos e boas intenções. Estas coisas aprendemos desde a infância: se fores um bom menino, dou-te um chocolate. Parece que ninguém é amado simplesmente pelo que é, por existir no mundo da forma como sente, mas sim, pelo que faz em troca desse amor. E quando alguém, por alguma razão muito íntima, deixa de dar carinho e corre para bem longe? A maioria carrega o botão do desliga-amor, activado pelos medos e sentimentos de abandono, e corresse em direcção aos braços mais quentinhos das redondezas.

A história ciclicamente renovasse: enquanto fizeres coisas por mim ou for assim eu vou-te amar e ficar ao teu lado porque eu tenho de me amar em primeiro lugar. Mas que espécie de amor é esse? É um amor que não serve nem a nós mesmos nem aos outros.
Eu também tenho receios, lobos maus aterrorizantes que atacam de quando em quando, mas não acredito em nada disso. Quando saí de uma importante relação, pensei para mim que o mundo no qual eu acreditava haveria de existir! Haveria de existir! Nem que este lugar fosse apenas dentro de mim... Mesmo que ele não existisse em mais recanto algum, se eu, pelo menos, pudesse construí-lo em mim, como um templo das coisas mais bonitas em que acredito, isso seria bonito, o mundo seria cheio de amor e nunca mais ficaria doente. Nesse mundo, ninguém precisaria de trocar amor por coisa alguma porque ele brotaria sozinho entre os dedos da mão e se alimentaria do respirar, do contemplar do mar, do fechar dos olhos na brisa e do abrir dos braços para voar na chuva. Nesse mundo, as pessoas não se abandonam. Elas nunca se vão embora porque não fomos um bom menino. Ou porque ficamos com os braços tão fracos que não conseguimos abraçar e estar perto. Mesmo quando o outro se vai embora, nós não vamos. Ficamos e fazer um jardim, um banquinho cheio de cores do qual se cuida porque aquele é o banquinho do nosso amor, do nosso grande amigo. Para que saiba que em qualquer momento, em qualquer lugar, daqui a quantos anos, não sei, pode simplesmente voltar voando, sem mais explicações, para olhar o mar de mãos dadas.
No mundo de cá, as relações se dão por ai. Eu fico sobre a pedra, enquanto estiveres saudável, amoroso e bem-humorado, nós nos amamos. Se se afundar, eu não mergulho para te dar a mão, eu salto para outra pedra e começo outra. Mas o que pode ser mais arrebatador nesse mundo do que o encontro entre duas pessoas? Para mim, reside aí todo o mistério da vida, a intenção mais genuína de um abraço. Encontrar alguém para encostar a ponta dos dedos no fundo do mar, é o máximo de encontro que pode existir, não mais que isso. Encostar a ponta dos dedos bem no fundo do mar. E isso não é nada fácil, porque existem os lobos maus do abandono, desejando, a todo instante, abocanhar os nossos braços e o nosso já pouco juízo. Mas se eu não atravessar isto agora, a minha arte será uma grande mentira, as minhas histórias de amor serão todas mentiras, o meu livro será uma grande mentira porque neles o que impera mais que tudo é a lealdade, como um Sancho Pança atrás do seu louco Dom Quixote, é a certeza de existir um lugar, em algum recanto, onde somos acolhidos por um grande amigo.

É por isso que eu tenho de ir. Eu vou mergulhar, ainda que eu tenha de ficar em silêncio, a cem metros de distância. Eu e o meu brinquedo de infância, porque no meu mundo não se abandona sequer os brinquedos que foram nossos amigos um dia.

Agora em silêncio... tentando ensinar lobos maus a nadar…

Ana

escrito em 1990...

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